REGIÃO
18/07/2025 às 23:41 por Redação


Única mulher a competir no paraciclismo gaúcho é de Santa Rosa

Única mulher a competir no paraciclismo gaúcho é de Santa Rosa
Foto: Cátia Martins / Cedido de Arquivo Pessoal

Aos 37 anos, Francieli Franke Kreutz vive um sonho: participar da primeira Seleção Gaúcha de Paraciclismo. Única mulher a competir no paraciclismo gaúcho, a atleta quer incentivar outras mulheres, com ou sem deficiência, a se dedicarem ao esporte.

Moradora de Santa Rosa, no Noroeste do Estado, Franciele divide sua rotina entre os treinos e sua atuação como servidora na Defensoria Pública, onde atua como analista processual.

Com pouco apoio para investir no paraciclismo, ela mesma banca viagens para participar do campeonato nacional da modalidade, na categoria H – a que o atleta pedala utilizando as mãos. A próxima será entre os dias 18 e 20 de julho, em Leme (SP).

Em entrevista ao Bella+, a atleta conta sobre o amor pelo ciclismo e o início da carreira, em 2021, em plena pandemia.

Qual a sensação de ter sido chamada para a primeira Seleção Gaúcha de Paraciclismo? E de ser a única paraciclista mulher do RS a competir?
É fantástico representar o nosso Estado, que é algo que dá visibilidade para ele, para mostrar a força dos gaúchos. Estar com meus colegas atletas, que são todos incríveis, que brigam diariamente para que isso aconteça, para fomentar ainda mais o esporte. Isso tudo é mágico! Nós estamos conseguindo fazer essa revolução, e somos o primeiro Estado a ter uma seleção de paraciclismo. E não é só isso. Podemos trazer mais gente, mostrar que cuidar da saúde é importante, que podemos nos movimentar, que tem um meio para a gente fazer um exercício bacana e que têm tipos de competição para qualquer um de nós. E sobre ser a primeira e única mulher a competir, eu já queria ter concorrentes. Me perguntam qual é a graça de competir sozinha, e eu sempre falo que é uma competição com a gente mesmo. É importante ter visibilidade para que mais pessoas tenham vontade de participar.

Como é a tua rotina de participações em provas?
Esse ano eu comecei a participar em provas nacionais. A primeira foi em março e foi em Indaiatuba (SP). A segunda foi nos dias 31 de maio 1º de junho, em Salvador (BA). E, agora (em julho), entre os dias 18 e 20, tem Leme (SP). Estou com as passagens compradas, também. No Gaúcho, estou com mais dificuldades de participar porque algumas provas coincidiram com as do Nacional. Mas, sempre que posso, participo. Como tudo é tão longe e como eu tenho outro trabalho, se é no domingo de manhã a competição, a gente consegue ir e voltar. Agora, se é no sábado de manhã, eu trabalho sexta até as 19h, então, começa a complicar um pouquinho. Mas, quando a gente consegue, a gente faz, porque é uma coisa que a gente gosta, né?

E o teu dia a dia, como concilias as rotinas de atleta e de servidora pública?
Meu horário de trabalho como servidora pública é do meio-dia às 19h. Então, eu treino todas as manhãs, tanto academia quanto bicicleta. Nas terças e quintas, faço academia, e segundas, quartas, sextas e sábados, eu pedalo.

Como te sentes nessa dupla jornada?
Eu trabalho na Defensoria (Pública), com processos, com pessoas, e isso tem um cansaço mais mental, porque é um trabalho na frente do computador, sentada, com pesquisa e escrita. E o treino é aquele momento que desopila tudo, em que estás fazendo um esforço físico. Eles se complementam e se ajudam. Então, isso tem um lado muito positivo.

Sobre teu financiamento enquanto atleta, tens algum apoio?
Eu tive um apoio do Sicredi para comprar essa minha bicicleta mais recente, e os demais gastos são todos de recursos próprios. Tem apoio da equipe, na medida do possível, e o restante a gente vai se virando. Por isso que às vezes complica algumas participações, pois não tem como sair todo o final de semana. Não há fôlego que aguente tudo isso, porque eu demoro ainda um pouco mais para a minha recuperação, que está em processo de evolução, e os gastos que podem ser destinados a isso são restritos.

Quando tu viajas para o nacional, por exemplo, és tu que bancas as tuas passagens?
Isso, por enquanto, sim. E são sempre duas (passagens), porque não tem como a gente atravessar o Estado, sair do Sul e ir lá para o centro sozinha, com uma bicicleta, uma cadeira de rodas, uma mala e uma muleta, né? Então sempre tem que ir alguém junto, é sempre o gasto dobrado nesse sentido. No meu ponto de vista, eu estou nessa luta como uma forma de motivação para as pessoas enxergarem a inclusão, saberem que todos nós podemos fazer o que a gente bem entender nas nossas condições. Eu sempre tenho a frase comigo que o nosso maior obstáculo somos nós mesmos, né? Que nós nos impedimos de fazer o que a gente talvez gostaria, ou porque a sociedade nos diz que é impossível ou porque ela demonstra que isso seja um pouco mais difícil. Eu tenho isso porque eu gosto do esporte, eu tenho isso de querer competir mais, de gostar de estar nesse meio, e também para dar esse norte para as pessoas e trazer mais gente para o paraciclismo ou para o ciclismo convencional, de preferência para mais mulheres verem que todas nós temos espaço para isso.

Como foi o início da tua relação com a bicicleta?
Desde pequeninha eu andava de bicicleta, mas a convencional. Eu andava com uma perninha só, e a minha família tinha feito uma adaptação, pois o pedal dela não parava. Na época eu não conhecia “pedal clip” (acessório que fixa o pedal nos pés). Chegou o momento, ali perto da adolescência, em que eu estava muito grande para uma bicicletinha, ficou uma coisa meio descompassada. E aí eu parei de andar porque, como teria que ser uma bicicleta maior, eu não alcançaria o pé no chão. Tentei até andar com prótese, mas não era seguro e não era a mesma coisa. E, em 2021, eu comprei essa minha outra bicicleta. Mas, antes disso, eu assistia as Paralimpíadas, sempre gostei de tudo que é tipo de esporte, e aí eu comecei a vislumbrar isso. Como sempre brinco: “Quando eu for grande, eu vou comprar uma dessas”. Comecei a pesquisar e descobri que, no Brasil, só tinha uma empresa que fabricava esse modelo. Eu não sei se agora surgiu uma outra ou não, mas era só essa: Handventus.

Foi em 2021 que tu começaste a pensar mais seriamente em voltar a andar de bicicleta?
Na verdade, o meu foco era fazer um exercício para cuidar da minha saúde, era me movimentar, porque quem tem alguma deficiência física não consegue sentir aquela emoção do vento no rosto, sabe? Aquela coisa que é diferente, né? Se tu estás numa cadeira de rodas ou caminhando com uma muleta ou prótese, essa sensação é mais rara de acontecer. A não ser quando tu estiveres dentro de um carro e colocares a cabeça fora (risos). Mas aí não é a mesma coisa, não é tu que está provendo isso. Então eu fui pesquisando, achei essa empresa e encomendei a bicicleta lá de São Paulo. Comecei a andar lá na minha cidade natal, Alecrim. E aí saía com meu primo, minha tia, meu esposo, todo mundo participava um pouco. Minha irmã ajudava e saía numa turminha. Um dia, eu postei uma foto dos passeios e a minha atual equipe, a Raptors, entrou em contato. Me perguntaram: “Fran, o que tu achas de competir?”. Na hora, falei: “Gente, eu tenho a bicicleta há dois meses e pouco, estou recém curtindo, sabendo como é que é. Nunca pensei nisso”. E eles insistiram, perguntando se eu queria participar de uma prova em Santa Cruz (do Sul). Foi minha primeira prova. E eu disse que não sabia se iria atender a expectativa deles, porque estava treinando no plano, mais leve. Daí disseram “Vamos junto, tu chegas lá e vê: se tu tiveres a fim de fazer e concluir a prova, tu fazes. Senão, se achar que não é para ti, tu que vê”.

Então, no primeiro contato, já foste chamada para competir?
Sim! E não senti qualquer pressão, foi uma coisa fantástica. E aí não adianta, né? O nosso espírito de competidor vai além de tudo. Tu estás num momento com todo mundo andando, todo mundo se motivando. Já participei da minha primeira prova, já concluí. Não me recordo quantos quilômetros foram, mas acredito que 9 ou 12. Primeira prova, em agosto de 2021. E eu comprei a bicicleta em maio, só 3 meses antes (risos)! Para o treino que eu estava tendo, para as “brincadeiras” que eu fazia, eu concluí a prova sem desmaiar no final (risos). Então, já foi um avanço significativo, né? Tem o nervosismo, a ansiedade, que tudo bate junto. Por conciliar tudo isso, eu acho que eu me saí bem, não precisei chamar a ambulância (risos).

Qual o valor dessa primeira bicicleta que compraste?
Essa primeira bicicleta era de ferro. Ela pesava 24kg, e eu pedalava sentada. Ela custou R$ 3.500. A gente compra sob medida, tem uma série de ajustes que podem ser feitos nela. Em nível nacional, a maioria (dos competidores) tem bicicletas de alumínio, fabricadas no Brasil, porque as do Exterior, as de carbono, são muito caras. Então as outras ficam circulando por aqui, os competidores vão trocando entre si, melhorando um pouco, vendendo uma, trazendo outra. E essas bikes são estilo de competição, mais inclinadas, mais deitadas. Elas não têm tanto atrito do vento e são mais leves. A aerodinâmica delas é diferente, as rodas, também.

Hoje tu usas a bicicleta de alumínio, na posição deitada. Qual é a diferença entre uma e outra, fisicamente falando?
Com a minha primeira bicicleta, eu utilizava a prótese para andar, para dar o equilíbrio. Minhas duas próteses têm aproximadamente 7kg. E a bicicleta tinha 24kg, e essa agora eu não utilizo as próteses e ela tem 17 kg. Então muda quase 15 kg ali nessa diferenciação.

As próteses eram usadas para te dar estabilidade?
É isso também. Na verdade, como a minha perna é bem curtinha, eu não ia alcançar no suporte dela, então, eu teria que fazer todo um outro ajuste. Com a prótese, ficou mais fácil, aproveitava para dar o equilíbrio e dava essa comodidade também, de não ter que fazer uma nova adaptação, alguma coisa nesse sentido. Na bicicleta deitada, por vezes a gente usa um cinto na cintura se o terreno é muito diferente e íngreme. Mas não costumo usar, como eu tenho uma perna e a outra um toquinho pequeno, então consigo fazer o equilíbrio e me segurar na bicicleta.

Qual a tua deficiência?
A perna direita é bem curtinha, então, eu tenho um pedaço mínimo do fêmur que me permite utilizar a prótese e fazer o movimento. A esquerda, a perna vai até um pouco abaixo do joelho, mas eu também utilizo prótese nela para dar sustentação para o joelho e para questão da altura também. E para não sobrecarregar tanto o quadril. Eu nasci com uma malformação congênita, com os quadris luxados. Já fiz cirurgia para corrigir, mas foi corrigido parcialmente. E tenho malformação no membro superior direito, também, com o braço um pouquinho mais curto, e na mão.

Retomando aquela primeira aproximação com o paraciclismo, em que tu foste participar da etapa regional do campeonato gaúcho. Foi ali que te brilharam os olhos para o esporte? A competitividade brotou?
Ah, eu sempre gostei. Quando pequena, eu jogava futebol com a mão. Eu tirava a prótese, colocava o tênis de futsal na mão e chutava com as mãos. Então eu sempre era artilheira, porque eu estava sempre escondida embaixo de todo mundo. Tocava para mim e era gol, já (risos)! Eu sempre gostei. Jogava vôlei, jogava caçador, andava a cavalo. O que tinha desse ramo de esportes, e depois mais de aventura, eu sempre gostei. Durante a primeira prova (de paraciclismo), e em todas as provas do (campeonato) gaúcho, quando passa um pelotão, eu, como sou sozinha, já vou bem para o lado direito, que é onde andam os mais lentos. Aí, quando vem aquele “mundo” do pelotão, já me encolhia toda por causa do receio. Mas aí vem o que te digo que é fantástico no esporte, no ciclismo: a motivação entre os colegas. Sempre que passa o pelotão, tem alguém que grita lá no meio: “Vamos, Fran!”. Sabe aquela forcinha? Ou: “Continua!”. Alguém sempre grita, sempre que passa um pelotão por ti, ou uma pessoa, não importa se é da tua equipe ou não, é aleatória. Quem é? Às vezes eu não sei, porque também estou focada em não perder o passo, mas isso é muito gratificante. Nas minhas palestras, eu uso uma foto em que estou sozinha e com um pelotão vindo. Sempre tenho a memória dessa motivação. É o que a gente nota que dá força. É o apoio mútuo, que todo mundo tem um com o outro e ninguém deixa o outro. Sempre tem alguém incentivando o outro.

Isso foi o que te despertou para entenderes que era esse o teu caminho?
Isso, tu vês que o povo está apoiando, então pensas que tu podes ser a pessoa que vai trazer mais alguém para o esporte, para cuidar da saúde, para ver que a inclusão é possível e que tem muita gente apoiando.

E toda essa transformação aconteceu durante a pandemia de Covid-19?
Isso, era bem na pandemia. Eu me cuidava, fazia academia, aquela coisa mais “morna”, digamos assim, né? Mas, depois disso, a coisa ficou mais coerente, um treino fixo, não tem de faltar. É frio, é chuva, o tempo que for, vai com vontade. Tenho um compromisso com a equipe, mas o compromisso maior acho que é comigo. Sabe aquela coisa de a gente se pôr no compromisso? Eu estou gostando disso, então, tenho que me comprometer a fazer o que eu preciso para que isso se realize.

Fonte: Correio do Povo


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