POLÍTICA
30/11/2024 às 11:32 por Ricardo Bolson


'Não vou ser amigo de Lula, mas preciso defender os interesses da Argentina', diz Milei

'Não vou ser amigo de Lula, mas preciso defender os interesses da Argentina', diz Milei

Após governar o Estado argentino por um ano, seu desprezo por ele permanece "infinito", disse ele ao The Economist em uma entrevista em 25 de novembro. Falando em seu escritório na Casa Rosada, a histórica sede do poder com tapetes vermelhos e estátuas de mármore, Milei tem um ar presidencial. Mas quando explica a filosofia por trás de seu experimento radical, soa exatamente como o "infiltrado" que afirma ser, destruindo o Estado por dentro.

Qualquer restrição à livre iniciativa empurra a sociedade para o socialismo, diz ele. Até mesmo a economia neoclássica, o arcabouço que orienta a maioria das políticas econômicas, "acaba favorecendo o socialismo". Para Milei, a lição é clara: "qualquer coisa que eu possa fazer para remover a interferência do Estado, eu vou fazer."

O novo pragmatismo do presidente também brilha nos assuntos externos. Enquanto fazia campanha em 2023, ele insultou repetidamente a China. Em um ponto, ponderou se era certo "comerciar com um assassino". Agora é "um parceiro fabuloso", entusiasma-se, tendo se encontrado recentemente com o presidente da China, Xi Jinping. "Eles não pedem nada. Querem comerciar calmamente."

De maneira semelhante, ele uma vez chamou o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, conhecido como Lula, de "comunista corrupto". Agora ele é mais nuançado.

"Não tenho que ser amigo de Lula. Tenho que garantir o comércio entre a Argentina e o Brasil. Vender gás para o Brasil é ótimo para mim. Não vou ser amigo de Lula, mas tenho uma responsabilidade institucional. Estou encarregado de defender os interesses da Argentina", diz ele, entusiasmando-se com um recente acordo para vender gás argentino ao Brasil.

Tudo isso é um bom presságio para a contínua recuperação econômica da Argentina. Mas grandes riscos pairam sobre os sucessos de Milei. Um é político. Ele se beneficiou da desordem entre a oposição que não durará para sempre. Nem a tolerância do público para o crescimento fraco, alto desemprego e pobreza, mesmo que a inflação tenha sido controlada. Ao dizer francamente aos eleitores que os cortes doeriam, ele baixou suas expectativas.

Agora Milei proclama que "a Argentina está entrando em seu melhor momento em 100 anos". Essa é uma expectativa mais difícil de gerenciar, especialmente se os argentinos não sentirem tal euforia em suas carteiras. Se os peronistas subirem nas pesquisas ou protestos incontroláveis irromperem, isso pode fazer os investidores fugirem e ameaçar a recuperação.

Outro risco é econômico. O peso parece novamente sobrevalorizado. O governo herdou e mantém controles de capital. Também define a taxa de câmbio oficial; desvalorizou o peso em 50% em dezembro de 2023, depois em 2% a cada mês desde então. Mas como a inflação tem sido superior a 2% ao mês, a taxa de câmbio real tem aumentado. Agora está se aproximando do nível que estava antes de Milei assumir o cargo.

Os argentinos entendem a força do peso; cerca de 55 ônibus levam compradores ansiosos para o Chile todos os dias, onde os produtos são muito mais baratos.

Isso é um obstáculo para as exportações e o crescimento. E Milei não pode manter o esquema sem controles de capital, mas esses afastam investidores que querem ter certeza de que podem tirar seu dinheiro da Argentina, não apenas colocá-lo.

Se e quando ele finalmente remover os controles de capital e liberar a taxa de câmbio, há o risco de uma desvalorização repentina. Isso poderia desencadear outra onda de inflação, minando a conquista emblemática de Milei e, talvez, sua popularidade. A sobrevalorização é um problema clássico argentino. Tende a terminar em crise.

Milei rejeita tudo isso. Ele diz que suas reformas justificam o valor do peso e que os controles de capital não desestimulam os investidores porque ele prometeu removê-los no próximo ano. Além disso, ele declara: "não estamos com pressa". Se ele tivesse mais financiamento externo, poderia remover os controles de capital mais cedo; ele precisa de dinheiro vivo para defender a taxa de câmbio flexível.

Mas o FMI parece pouco entusiasmado com esse uso para novos recursos. Isso pode estar azedando as relações com o Fundo. A Argentina deve US$ 42 bilhões ao Fundo. Milei enfatiza enfaticamente que o novo financiamento do FMI "é apenas uma das opções".

A questão do valor do peso é gerenciável, por enquanto. Os mercados não estão apostando em uma desvalorização iminente como fizeram, erroneamente, no início deste ano. Mas em prazos mais longos, os riscos permanecem. As políticas de Donald Trump poderiam elevar o dólar e a pressão sobre o peso poderia aumentar drasticamente, alerta Robin Brooks, do Brookings Institution, um think-tank.

Uma preocupação diferente é que, em seu zelo, Milei possa minar os freios e contrapesos da Argentina. "Não me desvio um milímetro das regras acordadas na Constituição", diz ele. No entanto, ele quer reformar os tribunais. Nada de errado com isso, mas para fazê-lo, ele nomeou um juiz para a Suprema Corte que é amplamente considerado desqualificado e que enfrenta alegações de manipular casos para beneficiar os bem relacionados.

A nomeação tem progredido tão lentamente no Senado que o governo levantou a possibilidade de forçá-la por decreto, uma medida controversa. Milei também afirma que 85% do que é escrito na imprensa argentina são mentiras.

Um risco final vem da própria volatilidade de Milei. Ele recentemente rompeu com seu vice-presidente. No mínimo, isso tornará mais difícil para ele aprovar leis no Senado. E ele está cada vez mais envolvido em guerras culturais, muito parecido com seus aliados no exterior.

Ele critica a "ideologia transgênero", o aborto e a mudança climática, que ele nega ser causada pelo homem. Essas causas são a nova frente do marxismo, afirma. Mas com a economia da Argentina ainda equilibrada em uma lâmina de faca, qualquer distração é um perigo.

Texto de The Economist, traduzido por Paulo Ricardo Martins, e publicado no Brasil pelo jornal Folha de São Paulo


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